Série "Crônicas de Guerra"
Traição
Era noite, mas eu não dormia. Estava num acampamento de nossa tropa. Eu estava bem desperto, mas deitado no chão. De repente, comecei a ouvir passos e vi sombras. Levantei-me lentamente, pegando a minha faca que trazia na cintura e fui em direção do ruído. Chegando lá, constatei ser dois de nossos homens, um branco e um afrodescendente. O afrodescendente era o meu amigo Johnson; o outro era do outro pelotão que se unira a nós, louro e de olhos verdes. Seu nome era Parker. Ameacei a ambos com a faca, sorrindo, só para assustá-los.
Flagrando-se
que era eu, Parker sussurrou um palavrão e disse:
– Merda, o sargento irlandês louco!
– O
que os dois estão fazendo? – perguntei em sussurro, sério, pois não gostara do
que Parker falara.
–
Apenas vamos urinar, sargento – disse Johnson, dando um sorriso forçado,
tentando amenizar aos coisas.
–
Vão, mas não se afastem muito. Tomem cuidado.
Ambos
pararam a alguns metros de mim e urinaram. E eu esperei. Quando os dois
terminaram e retornaram, voltei ao lugar que estava deitado. Deitei-me, mas
continuei acordado.
Ouvi
Flores resmungar:
–
Quero uma cama, por favor.
Ele
estava quase ao meu lado. Fiquei tentando dormir, mas estava com insônia.
Passou algum tempo, acredito que quase uma hora. Foi então que voltei a ver os
dois levantando-se e andando. Isso me deixou desconfiado, principalmente depois
do modo que Parker agiu ao me ver. Cutuquei Flores e sussurrei:
–
Johnson e Parker estão fazendo algo estranho, mexicano. Vem comigo descobrir o
que é – ordenei.
Flores
obedeceu meio a contragosto. Levantou-se e nós seguimos Johnson e Parker. Vimos
que eles entravam mata adentro e nós fomos atrás mantendo uma distância,
escondendo-nos para não sermos vistos. Quando chegamos diante de uma baixada na
mata, paramos e olhamos de longe. Iluminados pelo luar, os dois descerem uma
trilha e chegarem num acampamento japonês, o qual eu nem sabia da existência
dele tão perto. Abismei-me e perguntei pra mim mesmo – sem falar – o que os
dois estavam fazendo, eu nunca imaginara que fosse isso. Eles fizeram sinais de
luz com uma lanterna antes de se aproximarem do acampamento. Um japonês
sinalizou para eles com outra lanterna e eles chegaram aos inimigos. Vi os dois
falando com o soldado inimigo em japonês.
– Você
sabia que eles falavam japonês? – perguntei sussurrando a Flores.
E ele
negou com a cabeça. Eu senti meu coração disparar com aquilo, vendo que se
tratava de traição. Sei que tremi, ficando nervoso e tentando entender aqueles
dois colegas. Principalmente o Johnson, a quem eu considerava um amigo.
Até
que o mexicano sussurrou:
– Não
posso crer... Os dois são traidores!
– Eu
também não posso – sussurrei.
Eles
entraram numa tenda dos japoneses e ficaram por lá um tempo. Nós ficamos nos
olhando, sem saber o que fazer.
– O
que devemos fazer? – perguntou Flores.
– Eu
não sei – disse nervoso. – Se eu chegar dizendo que são traidores para todos, o
resto da tropa não acreditará, já que fui eu quem descobriu. Dirão que os dois
fizeram algo e que eu estava tramando para matá-los como disseram que fiz com o
tenente Wayner.
– Mas
eu sou sua testemunha – disse Flores.
– Não
contará muito! Somos amigos.
– E
se contarmos o que vimos ao coronel? Ele certamente acreditará em nós – sugeriu
Flores.
–
Isso, você tem razão – concordei, depois lamentei abraçando o meu próprio rosto
– Ah, não, logo o Johnson! – como viram pelas narrativas anteriores, Johnson
era um dos meus melhores amigos, e também de Flores.
Vimos
então os dois saírem da tenda e voltarem à trilha. E nós dois nos afastamos
rápido, voltando para onde estávamos acampados. Chegamos antes deles e nos
deitamos. Vimo-los passando por nós deitados e olhando a todos, inclusive a nós
que fingimos dormir. Não consegui dormir mais e logo amanheceu. Pensava muito
em Johnson, dedurar um amigo é muito difícil. Chamei o mexicano e antes que a
tropa toda acordasse fui até o coronel, que dormia no chão como todos nós.
Cutuquei-o e ele acordou, estranhando ao ver nós dois tão cedo em sua tenda.
– Por
favor, senhor, – sussurrei – venha conosco! É importante!
Ele
levantou e seguiu-nos, sem perguntar nada. Fomos para mais afastado dos dois e
longe donde vimos estarem os japoneses. Contamos tudo o que vimos ao coronel.
Ele ficou tão boquiaberto quanto nós.
– Não
contei para o resto da tropa, porque acho que não irão acreditar em mim –
expliquei afobado.
– É
difícil acreditar que os dois sejam traidores, mas... Depois do que eles
fizeram – disse Flores nervoso, mas bem mais calmo do que eu.
–
Acalmem-se os dois! – disse o coronel. – Tenho uma ideia, mas preciso que vocês
dois tenham sangue frio. Quero que vocês ajam com os dois como se nada tivesse
acontecido. – E olhou para mim: – Principalmente você, Irving! Sei que Flores
vai conseguir, mas você... Eu tenho minhas dúvidas. Você é sangue muito quente
– que eu era esquentadinho.
– Eu
juro que vou tentar me controlar – disse e ele sorriu.
E
todos nós voltamos para junto do restante da tropa.
Eu
passei tenso por outros soldados juntos de Johnson.
– Ei,
sargento! – chamou Johnson como antes de eu saber que ele era um traidor, rindo
e brincando.
Fui
para perto dele, sério, num misto de irritado com triste. Ele começou a dizer
besteiras engraçadas para todos que estavam ao redor e eu não prestei a
atenção. Só pensava em como ele poderia ser um traidor. Aquilo me doía muito,
principalmente porque gostava dele. Ao final, todos riram, menos eu. E ele
notou.
– O
sargento levantou hoje de mau-humor – disse o soldado Hart.
Não
discordei. Apenas gritei, ordenando:
–
Peguem suas armas! Vamos! Vamos andar.
Fui
estúpido e grosseiro. O coronel passou por mim, segurou-me pelo braço e
sussurrou:
–
Sangue frio! – e eu entendi que era para eu moderar, mas era muito difícil.
Quando
estávamos perto de um campo, um de nossos aviões cargueiros passou, largando de
paraquedas várias caixas que nós sabíamos que eram munições, alimentos e
remédios. Preparávamos para ir buscar a carga que caía, quando fomos atacados por
japoneses que nos impediram de chegar à carga. Eles é que pegaram. Enquanto nos
defendíamos, vimos que assim que eles pegaram a carga, os japoneses nos
deixaram.
O
coronel Lander aproximou-se de mim, de Flores e do major Welt, o qual deve ter
ficado sabendo pelo coronel, e disse:
–
Provavelmente foi isso que os dois informaram aos japoneses. Todos nós sabíamos
da chegada da carga.
–
Sim, – concordei.
–
Vieram roubar a nossa munição – disse o major. – Logo ficaremos sem se não
conseguirmos pegar outra carga e será fácil o ataque deles.
– Sei
o que fazer – disse o coronel, confiante.
Chamou
o soldado do rádio e pediu que ele ligasse com o outro pelotão ao sul. Ele logo
obedeceu. O coronel foi para um canto isolado com o soldado do rádio, afastado
de nós.
O
coronel Lander chegava à tropa e falava:
– Tem
um paiol que fica ao sul, a umas duas milhas! Nós iremos até lá. Senão
conseguirmos munição, estaremos com grandes problemas... Por hora vamos
descansar.
À
noite, eu vi que Johnson e Parker novamente se levantarem pela madrugada. Não
falei nada. Depois que eles partiram, o coronel Lander chegou ao meu lado.
–
Vamos, contem a eles! – sussurrava para os dois contarem aos japoneses e sorriu
para mim, fazendo-me flagrar que fazia parte dos planos dele os dois contarem
ao inimigo.
Apenas
o olhei sério e voltei a tentar dormir.
Estávamos
andando. Ao invés de seguirmos ao sul, o coronel Lander fez nós irmos a
sudeste. Johnson chegou a mim e perguntou:
– Não
íamos para o sul?
Eu
disse como se nada soubesse:
–
Íamos! Mas o coronel deve ter suas razões para mudar a rota.
Ele
concordou sacudindo a cabeça, claramente preocupado. E eu controlei a minha
ira, de dar-lhe um grande murro.
Chegamos
dentro de uma mata.
–
Mande-os espalharem-se em diversos pontos ao redor e irem em silêncio,
escondidos – ordenou-me o coronel e eu repassei a ordem. – Mas não mande os
dois – referia-se a Johnson e a Parker. – Diga pra ficarem conosco.
Chegamos
onde deveria ser o paiol. Ali, realmente havia muitas caixas empilhadas e os
japoneses já estavam no local. Nós os víamos do alto, em uma baixada, no meio
das árvores, camuflados. Vimos quando foi aberta uma das caixas e não havia
nada nela.
–
Johnson e Parker – chamou o coronel. Os dois se aproximaram dele e ele ordenou:
– Vocês dois! Cheguem lá no meio dos japoneses e digam que eles estão cercados.
– Por
que nós? – perguntou Parker, assustado.
–
Alguém tem que fazer! – disse o coronel.
– Nós
nunca avisamos... Vocês vão ficar à vista? – perguntou Johnson.
–
Sim! – E ordenou sério: – Vamos, vão de uma vez!
Eles
foram claramente apavorados. Desceram a rampa e foram ficando a vista dos
japoneses. Esses não se importaram com eles, provando para todos que eram
conhecidos dos inimigos. Um tenente japonês aproximou-se dos dois, sorridente,
e curvou-se, uma forma amigável que o povo japonês tem de se cumprimentar.
Johnson
falou em inglês agressivo, gesticulando com a cabeça ao japonês outra coisa:
–
Vocês estão cercados, rendam-se!
O
tenente japonês disse algo em japonês, confuso, sem entender. Parker repetiu o
que Johnson dissera, sinalizando a sua volta, e só então o tenente flagrou-se
do que acontecia. E a nossa tropa ficou visível.
Do
outro lado, a outra de nossa tropa também se tornou visível. Todos apontaram
suas armas aos japoneses e a Johnson e Parker. Os japoneses se renderam. O
coronel foi direto nos nossos dois colegas apontando seu revólver, com Hart.
Hart retirou as armas deles.
–
Seus traidores miseráveis – chamou-os o coronel rosnando.
Os
dois começaram a falar ao mesmo tempo, que eram inocentes, que não eram
traidores, que o coronel tinha cometido um engano. O coronel foi até os dois e
arrancou as insígnias deles.
–
Vocês desonraram seu próprio país.
E eu
e Flores ficamos mirando aos dois com nossos rifles. Meu coração quase saia
pela boca já imaginando que ia acontecer com meu amigo. O coronel ordenou cinco
de nossos homens para deixarem seus rifles aos pés dele. Eles os fizeram.
Retirou as balas de um. Depois misturou os rifles e pediu que os cinco
voltassem a pegá-lo. Eles os pegaram. Mesmo sem o coronel dizer, todos
entenderam de que se tratava de um fuzilamento. Essa era a pena a quem fosse
traidor. Os cinco ficaram logo em fileira diante dos dois, que estavam lado a
lado, apavorados.
Eles
continuavam dizendo que eram inocentes. Eu abaixei a minha arma e somente
fiquei olhando, triste, sufocado. Logo o sargento Ladd disse:
–
Preparar, apontar, fogo!
E os
dois caíram mortos cobertos pelos tiros. Era estranho o sentimento de ser
traído. Eu sentia como se fosse ferido sem o ser. Acho que todo o meu pelotão
sentiu isso. Matar um colega que estivera com a gente durante tanto tempo, no
treinamento, nos confrontos e na farra foi uma das piores sensações que tive,
apesar de não ter dado nenhum tiro contra eles. Talvez por ter sido eu quem
descobrira a traição.
E
quanto a Johnson, eu não consigo ainda compreender as razões que levaram a
traição dele. Isso me sufoca, já que como viram, ele sempre estivera comigo e
era meu amigo. Gostaria de reencontrá-lo e perguntar o que passou pela cabeça
dele ao cometer aquela traição. Como acredito em reencarnação, quem sabe quando
nos cruzarmos nessa ou noutra vida eu possa fazer isso... Espero reconhecê-lo.
E os japoneses
foram todos levados como prisioneiros.