quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

Crônicas

  Série "Crônicas de Guerra"

Traição

            Era noite, mas eu não dormia. Estava num acampamento de nossa tropa. Eu estava bem desperto, mas deitado no chão. De repente, comecei a ouvir passos e vi sombras. Levantei-me lentamente, pegando a minha faca que trazia na cintura e fui em direção do ruído. Chegando lá, constatei ser dois de nossos homens, um branco e um afrodescendente. O afrodescendente era o meu amigo Johnson; o outro era do outro pelotão que se unira a nós, louro e de olhos verdes. Seu nome era Parker. Ameacei a ambos com a faca, sorrindo, só para assustá-los.

Flagrando-se que era eu, Parker sussurrou um palavrão e disse:

Merda, o sargento irlandês louco!

– O que os dois estão fazendo? – perguntei em sussurro, sério, pois não gostara do que Parker falara.

– Apenas vamos urinar, sargento – disse Johnson, dando um sorriso forçado, tentando amenizar aos coisas.

– Vão, mas não se afastem muito. Tomem cuidado.

Ambos pararam a alguns metros de mim e urinaram. E eu esperei. Quando os dois terminaram e retornaram, voltei ao lugar que estava deitado. Deitei-me, mas continuei acordado.

Ouvi Flores resmungar:

– Quero uma cama, por favor.

Ele estava quase ao meu lado. Fiquei tentando dormir, mas estava com insônia. Passou algum tempo, acredito que quase uma hora. Foi então que voltei a ver os dois levantando-se e andando. Isso me deixou desconfiado, principalmente depois do modo que Parker agiu ao me ver. Cutuquei Flores e sussurrei:

– Johnson e Parker estão fazendo algo estranho, mexicano. Vem comigo descobrir o que é – ordenei.

Flores obedeceu meio a contragosto. Levantou-se e nós seguimos Johnson e Parker. Vimos que eles entravam mata adentro e nós fomos atrás mantendo uma distância, escondendo-nos para não sermos vistos. Quando chegamos diante de uma baixada na mata, paramos e olhamos de longe. Iluminados pelo luar, os dois descerem uma trilha e chegarem num acampamento japonês, o qual eu nem sabia da existência dele tão perto. Abismei-me e perguntei pra mim mesmo – sem falar – o que os dois estavam fazendo, eu nunca imaginara que fosse isso. Eles fizeram sinais de luz com uma lanterna antes de se aproximarem do acampamento. Um japonês sinalizou para eles com outra lanterna e eles chegaram aos inimigos. Vi os dois falando com o soldado inimigo em japonês.

– Você sabia que eles falavam japonês? – perguntei sussurrando a Flores.

E ele negou com a cabeça. Eu senti meu coração disparar com aquilo, vendo que se tratava de traição. Sei que tremi, ficando nervoso e tentando entender aqueles dois colegas. Principalmente o Johnson, a quem eu considerava um amigo.

Até que o mexicano sussurrou:

– Não posso crer... Os dois são traidores!

– Eu também não posso – sussurrei.

Eles entraram numa tenda dos japoneses e ficaram por lá um tempo. Nós ficamos nos olhando, sem saber o que fazer.

– O que devemos fazer? – perguntou Flores.

– Eu não sei – disse nervoso. – Se eu chegar dizendo que são traidores para todos, o resto da tropa não acreditará, já que fui eu quem descobriu. Dirão que os dois fizeram algo e que eu estava tramando para matá-los como disseram que fiz com o tenente Wayner.

– Mas eu sou sua testemunha – disse Flores.

– Não contará muito! Somos amigos.

– E se contarmos o que vimos ao coronel? Ele certamente acreditará em nós – sugeriu Flores.

– Isso, você tem razão – concordei, depois lamentei abraçando o meu próprio rosto – Ah, não, logo o Johnson! – como viram pelas narrativas anteriores, Johnson era um dos meus melhores amigos, e também de Flores.

Vimos então os dois saírem da tenda e voltarem à trilha. E nós dois nos afastamos rápido, voltando para onde estávamos acampados. Chegamos antes deles e nos deitamos. Vimo-los passando por nós deitados e olhando a todos, inclusive a nós que fingimos dormir. Não consegui dormir mais e logo amanheceu. Pensava muito em Johnson, dedurar um amigo é muito difícil. Chamei o mexicano e antes que a tropa toda acordasse fui até o coronel, que dormia no chão como todos nós. Cutuquei-o e ele acordou, estranhando ao ver nós dois tão cedo em sua tenda.

– Por favor, senhor, – sussurrei – venha conosco! É importante!

Ele levantou e seguiu-nos, sem perguntar nada. Fomos para mais afastado dos dois e longe donde vimos estarem os japoneses. Contamos tudo o que vimos ao coronel. Ele ficou tão boquiaberto quanto nós.

– Não contei para o resto da tropa, porque acho que não irão acreditar em mim – expliquei afobado.

– É difícil acreditar que os dois sejam traidores, mas... Depois do que eles fizeram – disse Flores nervoso, mas bem mais calmo do que eu.

– Acalmem-se os dois! – disse o coronel. – Tenho uma ideia, mas preciso que vocês dois tenham sangue frio. Quero que vocês ajam com os dois como se nada tivesse acontecido. – E olhou para mim: – Principalmente você, Irving! Sei que Flores vai conseguir, mas você... Eu tenho minhas dúvidas. Você é sangue muito quente – que eu era esquentadinho.

– Eu juro que vou tentar me controlar – disse e ele sorriu.

E todos nós voltamos para junto do restante da tropa.

 

 

Eu passei tenso por outros soldados juntos de Johnson.

– Ei, sargento! – chamou Johnson como antes de eu saber que ele era um traidor, rindo e brincando.

Fui para perto dele, sério, num misto de irritado com triste. Ele começou a dizer besteiras engraçadas para todos que estavam ao redor e eu não prestei a atenção. Só pensava em como ele poderia ser um traidor. Aquilo me doía muito, principalmente porque gostava dele. Ao final, todos riram, menos eu. E ele notou.

– O sargento levantou hoje de mau-humor – disse o soldado Hart.

Não discordei. Apenas gritei, ordenando:

– Peguem suas armas! Vamos! Vamos andar.

Fui estúpido e grosseiro. O coronel passou por mim, segurou-me pelo braço e sussurrou:

– Sangue frio! – e eu entendi que era para eu moderar, mas era muito difícil.

 

 

Quando estávamos perto de um campo, um de nossos aviões cargueiros passou, largando de paraquedas várias caixas que nós sabíamos que eram munições, alimentos e remédios. Preparávamos para ir buscar a carga que caía, quando fomos atacados por japoneses que nos impediram de chegar à carga. Eles é que pegaram. Enquanto nos defendíamos, vimos que assim que eles pegaram a carga, os japoneses nos deixaram.

O coronel Lander aproximou-se de mim, de Flores e do major Welt, o qual deve ter ficado sabendo pelo coronel, e disse:

– Provavelmente foi isso que os dois informaram aos japoneses. Todos nós sabíamos da chegada da carga.

– Sim, – concordei.

– Vieram roubar a nossa munição – disse o major. – Logo ficaremos sem se não conseguirmos pegar outra carga e será fácil o ataque deles.

– Sei o que fazer – disse o coronel, confiante.

Chamou o soldado do rádio e pediu que ele ligasse com o outro pelotão ao sul. Ele logo obedeceu. O coronel foi para um canto isolado com o soldado do rádio, afastado de nós.

 

 

O coronel Lander chegava à tropa e falava:

– Tem um paiol que fica ao sul, a umas duas milhas! Nós iremos até lá. Senão conseguirmos munição, estaremos com grandes problemas... Por hora vamos descansar.

 

 

À noite, eu vi que Johnson e Parker novamente se levantarem pela madrugada. Não falei nada. Depois que eles partiram, o coronel Lander chegou ao meu lado.

– Vamos, contem a eles! – sussurrava para os dois contarem aos japoneses e sorriu para mim, fazendo-me flagrar que fazia parte dos planos dele os dois contarem ao inimigo.

Apenas o olhei sério e voltei a tentar dormir.

 

 

Estávamos andando. Ao invés de seguirmos ao sul, o coronel Lander fez nós irmos a sudeste. Johnson chegou a mim e perguntou:

– Não íamos para o sul?

Eu disse como se nada soubesse:

– Íamos! Mas o coronel deve ter suas razões para mudar a rota.

Ele concordou sacudindo a cabeça, claramente preocupado. E eu controlei a minha ira, de dar-lhe um grande murro.

 

 

Chegamos dentro de uma mata.

– Mande-os espalharem-se em diversos pontos ao redor e irem em silêncio, escondidos – ordenou-me o coronel e eu repassei a ordem. – Mas não mande os dois – referia-se a Johnson e a Parker. – Diga pra ficarem conosco.

Chegamos onde deveria ser o paiol. Ali, realmente havia muitas caixas empilhadas e os japoneses já estavam no local. Nós os víamos do alto, em uma baixada, no meio das árvores, camuflados. Vimos quando foi aberta uma das caixas e não havia nada nela.

– Johnson e Parker – chamou o coronel. Os dois se aproximaram dele e ele ordenou: – Vocês dois! Cheguem lá no meio dos japoneses e digam que eles estão cercados.

– Por que nós? – perguntou Parker, assustado.

– Alguém tem que fazer! – disse o coronel.

– Nós nunca avisamos... Vocês vão ficar à vista? – perguntou Johnson.

– Sim! – E ordenou sério: – Vamos, vão de uma vez!

Eles foram claramente apavorados. Desceram a rampa e foram ficando a vista dos japoneses. Esses não se importaram com eles, provando para todos que eram conhecidos dos inimigos. Um tenente japonês aproximou-se dos dois, sorridente, e curvou-se, uma forma amigável que o povo japonês tem de se cumprimentar.

Johnson falou em inglês agressivo, gesticulando com a cabeça ao japonês outra coisa:

– Vocês estão cercados, rendam-se!

O tenente japonês disse algo em japonês, confuso, sem entender. Parker repetiu o que Johnson dissera, sinalizando a sua volta, e só então o tenente flagrou-se do que acontecia. E a nossa tropa ficou visível.

Do outro lado, a outra de nossa tropa também se tornou visível. Todos apontaram suas armas aos japoneses e a Johnson e Parker. Os japoneses se renderam. O coronel foi direto nos nossos dois colegas apontando seu revólver, com Hart. Hart retirou as armas deles.

– Seus traidores miseráveis – chamou-os o coronel rosnando.

Os dois começaram a falar ao mesmo tempo, que eram inocentes, que não eram traidores, que o coronel tinha cometido um engano. O coronel foi até os dois e arrancou as insígnias deles.

– Vocês desonraram seu próprio país.

E eu e Flores ficamos mirando aos dois com nossos rifles. Meu coração quase saia pela boca já imaginando que ia acontecer com meu amigo. O coronel ordenou cinco de nossos homens para deixarem seus rifles aos pés dele. Eles os fizeram. Retirou as balas de um. Depois misturou os rifles e pediu que os cinco voltassem a pegá-lo. Eles os pegaram. Mesmo sem o coronel dizer, todos entenderam de que se tratava de um fuzilamento. Essa era a pena a quem fosse traidor. Os cinco ficaram logo em fileira diante dos dois, que estavam lado a lado, apavorados.

Eles continuavam dizendo que eram inocentes. Eu abaixei a minha arma e somente fiquei olhando, triste, sufocado. Logo o sargento Ladd disse:

– Preparar, apontar, fogo!

E os dois caíram mortos cobertos pelos tiros. Era estranho o sentimento de ser traído. Eu sentia como se fosse ferido sem o ser. Acho que todo o meu pelotão sentiu isso. Matar um colega que estivera com a gente durante tanto tempo, no treinamento, nos confrontos e na farra foi uma das piores sensações que tive, apesar de não ter dado nenhum tiro contra eles. Talvez por ter sido eu quem descobrira a traição.

E quanto a Johnson, eu não consigo ainda compreender as razões que levaram a traição dele. Isso me sufoca, já que como viram, ele sempre estivera comigo e era meu amigo. Gostaria de reencontrá-lo e perguntar o que passou pela cabeça dele ao cometer aquela traição. Como acredito em reencarnação, quem sabe quando nos cruzarmos nessa ou noutra vida eu possa fazer isso... Espero reconhecê-lo.

E os japoneses foram todos levados como prisioneiros.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2023