Série "Crônicas de Guerra"
Gratidão
Parávamos
de andar e sentei no chão, ainda me sentindo muito triste. De pé, ao meu lado
esquerdo, estava Flores. E no direito, estava Johnson, sentado. Sentia uma
grande coceira nas pernas, na altura das canelas. Estava um bom tempo sentindo
aquela coceira, só então nós paramos e eu pude coçar sob as calças. Mas como a
coceira era demais, decidi tirar os coturnos e erguer as pernas das calças para
coçar. Ao erguê-las, as vi inchadas, numa ferida só, vermelha esbranquiçada,
purgando. Eu surpreendi-me.
–
Deus, como estão as suas pernas, irlandês! – disse Flores, espantado.
– Não
coce, Irving! Será pior! – disse Johnson. – Médico! – chamou o médico do
pelotão.
O
médico chegou e olhou minhas pernas, agachando-se. Perguntou:
– O
que sente?
–
Muita coceira.
–
Algo mais? Sente-se febril, enjoo ou vontade de vomitar?
–
Não, só coceira.
–
Parece uma dermatite. Pode ter sido causada picadas de insetos, alguma comida,
ou até pela passagem em alguma planta – levantou-se. – Não é nada.
– Vai
me dar algum remédio? – perguntei.
– Não
tenho nada para isso. Talvez num posto da cruz vermelha tenha algo. Não há
nenhum por aqui. Aguente e evite coçar.
Eu
abaixei as pernas das calças e calcei os coturnos outra vez. E fiquei
controlando-me para não me coçar, mas era difícil.
Estava
em meio a uma batalha. Dividia atirar com um revólver e me coçar. Agora eu
sentia coceira não só em minhas pernas, também em meu peito, costas (abaixo,
perto da cintura) e no rosto, na bochecha. Todavia, mesmo assim, consegui me
defender. Logo acabou o confronto. As feridas estavam sobre as outras feridas
que mal estavam cicatrizando no rosto (das torturas anteriores e do tiro de
raspão).
Foi
quando o coronel passou a minha frente, apavorou-se e perguntou:
– O
que tem no seu rosto, Irving?
–
Nada – disse.
–
Médico! – chamou ele.
O
médico outra vez veio até mim, e olhou a ferida do meu rosto. Disse:
– É
como aquelas das pernas, um surto epitelial. Tem coceira em mais algum lugar?
– No
peito, na mão e nas costas.
O
médico olhou primeiro minha mão direita, depois me fez abrir a camisa da farda
e olhou de perto, com grande área em ferida, purgando, vermelho esbranquiçado.
Olhou as minhas costas, e essa eu não consegui ver.
–
Estão todas iguais! Deixe-me ver as tuas pernas outra vez! – pediu.
Eu
sentei-me no chão. Tirei os coturnos outra vez e antes de ter levantado, todos
se assustaram, inclusive eu. Minhas pernas estavam tão inchadas que ficaram
justas nas calças. Purgavam tanto, que estavam encharcadas e grudara o tecido.
O médico forçou-me a levantar o tecido e eu gritei de dor ao tentá-lo erguer. O
médico então pegou uma faca e cortou o tecido e só assim pode erguê-lo e ver.
O
coronel perguntou agressivo ao médico:
– O
que é isso que ele tem?
– Não
sei ao certo, parece uma dermatite – disse o médico mais uma vez. – Não tenho
nenhum remédio para isso. Ninguém pode fazer nada, a não ser limpar as feridas.
Deram-me
uma nova calça, de número maior para ficar mais solta.
Nós
chegávamos num vilarejo. Eu vinha atrás do coronel, seguido do mexicano e por
Flores, bem como Letter. Agora sentia coceira em quase todo o rosto. Ele estava
tão inchado que meus olhos estavam pequenos. Eu podia ver que sobre minha mão
direita também estava cheio de feridas. Paramos no meio da rua e havia muitos
civis asiáticos andando na rua, homens e mulheres, a maioria crianças e velhos.
Fizemos
uma roda, entre eu, Johnson, Flores, Joshua, Smith e Letter. Johnson comentou:
–
Você está com uma aparência horrível, irlandês.
Letter
ironizou:
–
Irving está agora com a sua real aparência de monstro – e riu.
Olhei-o
zangado e sinalizei a ele um palavrão. Smith comentou:
–
Acho estranho não haver nenhum remédio para isso.
Nesse
momento, um idoso asiático aproximou-se de nós e veio até mim. Olhou o meu
rosto, as feridas nele e falou com mal inglês:
–
Curar isso sei!
Eu
surpreendi-me e perguntei:
–
Curar? Você sabe realmente como me curar?
E ele
sacudiu a cabeça, afirmando, e disse:
–
Sim. Quer? – sacudi a cabeça afirmando. – Venha!
Puxou-me
e eu não fui. Ele parou, estranhando. Sinalizei para esperar. Procurei o
coronel, para pedir permissão, e somente nesse instante observei que ele estava
quase ao meu lado. Ele foi logo dizendo sem ter eu nem ao menos perguntado:
– Vá!
Tem permissão! Johnson e Flores, vão com ele.
Sorri
e fui até o asiático. Ele disse:
– Só
tem uma condição...
E eu
preocupei-me. Perguntei:
– O
quê?
–
Após curar você promete fazer o que eu pedir.
– O
que o senhor vai pedir? – perguntei, preocupado.
– Não
agora dizer! Depois! Cura, primeiro!
Eu
duvidei, mas como não me aguentava mais e deseja muito ser curado, logo decidi:
–
Tudo bem, eu aceito!
Ele
me puxou para uma casa perto dali. Johnson e Flores vieram atrás. Entrei na
casa e ele me puxou para um dos quartos, passando por uma sala, onde havia duas
meninas brincando com uns potes de barro. As meninas saíram logo que entrei. No
quarto, não havia cama, só uma esteira no chão. O velho mandou:
–
Armas, dê amigos! Tirar toda a roupa!
Dei
minhas armas ao mexicano e tirei a roupa. Quando estava somente de cuecas,
perguntei:
–
Devo tirar ela também?
– Feridas
por lá? – apontou para o meio de minhas partes íntimas.
–
Não!
–
Então tirar não precisar.
Depois
ele pegou todas as minhas roupas e saiu para rua, e como eu estava quase nu,
não o segui. Johnson o seguiu, levando consigo as minhas armas. Fiquei um tempo
olhando para o mexicano, confuso pela demora. O velho voltou trazendo um pote
com água e um pano. Johnson veio atrás dele.
– Ele
queimou as suas roupas – disse Johnson.
Assustei-me
e perguntei:
– O
que vou vestir? – e Johnson bateu os ombros.
–
Deitar! – ordenou o velho.
Deitei
e ele passou aquele pano por todo o meu corpo, mesmo nas partes não atingidas
pelas feridas. Depois saiu dali e voltou trazendo um pote com uma pasta feita
por ervas, ataduras e um pote cheio de folhas. Passou pacientemente em todas as
feridas a pasta, colocando sobre elas umas folhas e enfaixando. Enfaixou
inclusive o meu rosto, passando as ataduras até acima de meus cabelos, deixando
somente acima dos olhos e abaixo da boca, livre.
Depois
disso, preparou e deu-me um chá.
–
Durma! – mandou-me o velho. – Chá sono.
Eu
estirei-me na esteira e ele me tapou com uma coberta laranja. E acho que dormi.
Fui
despertado pelo mexicano que me sacudia. Vi ao meu lado o coronel Lander e
Johnson. Flores disse:
–
Temos que partir, Irving! Você está dormindo há um dia.
Surpreendi-me
por ter dormido tanto e sentei na esteira. O velho disse para o coronel:
–
Esperar mais, ele curado.
O
coronel disse agressivo:
– Não
vou ficar esperando Irving, temos uma missão a cumprir.
Eu
comecei a tirar a atadura do rosto ligeiro, preocupado por estar trancando a
tropa. O velho olhou-me desgostoso e começou a ajudar-me. Logo tiramos as
ataduras e as folhas. O coronel, Johnson e o mexicano espantaram-se com o
estado que estavam as feridas. Eu não via, mas já não sentia coceira, nem o
inchaço. Eu olhei a minha mão e só tinha uma casca na ferida dela. Olhei o meu
peito e as pernas, e ambos estavam como a mão. Toquei no rosto e senti o mesmo.
Sorri para o velho.
–
Funcionou! Muito obrigado – agradeci ao velho e ele curvou-se, sorrindo, retribuindo
ao agradecimento.
O
velho ainda me estendeu uma muda de roupas, que consistiam em uma calça da cor
de algodão cru e uma camisa branca. Eu vesti a ambos. Parei diante do velho e
perguntei:
– O
que o senhor quer que eu faça para pagar a dívida que tenho com o senhor?
Ele
disse dando um sorriso forçado:
–
Mate-me!
Todos
nós nos surpreendemos. E eu questionei confuso repetindo:
–
Matar o senhor?
– O
senhor não pode pedir isso a ele – intrometeu-se o mexicano, nervoso.
–
Isso é uma loucura! – falou também Johnson. – Como o Irving vai matar alguém
que a pouco o curou?
– O
que o senhor pede a ele é constrangedor – disse o coronel.
E o
velho disse agressivo:
– Ele
prometeu! Parte minha fiz! Ele fazer parte dele!
– Por
que quer que faça isso? – perguntei sério.
–
Quatro filhos, dois netos e esposa mortos – disse o velho. – Não ninguém mais.
Direito meu querer morrer. Mas coragem não ter. Para vocês matar mais um
diferença não fará.
Fiquei
me lembrando de minha vida, do que passara e de meu desejo de morrer. Ele tinha
mais motivos que eu de desejar a morte. Johnson e Flores argumentavam ainda
para ele não desejar aquilo, quando eu saquei o revólver de Johnson e o matei
com três tiros no peito. Foi de surpresa, até mesmo para o velho. Logo ficou
caído no chão, morto.
Johnson
e Flores me olharam espantados, o coronel não. Estava sério. Ficamos alguns
segundos em silêncio, até que o coronel ordenou:
–
Vamos embora.
Saímos
dali e eu não sentia nada pelo que havia feito, julgava-me certo. Tinha quitado
a minha dívida. Fomos andando e nos reunindo com a tropa. Letter chegou até
Johnson e perguntou:
– O
que foram aqueles tiros?
E
Johnson falou indignado comigo:
– O
Irving matou o velho.
Letter
empalideceu. Passamos andando pelos corpos de três soldados americanos mortos e
o coronel mandou-me:
–
Retire a farda de algum deles e vista-a e tire essa roupa de civil. – Depois
gritou ordenando a tropa: – Atenção, preparem-se para partir.
Eu
passei a tirar a farda dos colegas mortos para usar, quando Letter parou ao meu
lado e gritou:
–
Como fez isso? Como pode matar quem havia lhe curado?
– Eu
prometi a ele fazer o que ele pedisse depois de me curar. E ele me pediu que o
matasse. O matei por gratidão!
Letter
enfureceu e afastou-se de mim, misturando-se com nossos outros colegas.
Enquanto isso, vesti-me. Ele retornou e eu já estava praticamente fardado,
terminando de amarrar os coturnos. Ele disse:
–
Gratidão?! Você poderia dizer não, que não ia matá-lo e ir embora. Eu faria
isso, Johnson faria e Flores faria. Pela primeira vez eles estão discordando do
que você fez. Se o velho queria morrer, pediu pra pessoa certa. O maior
assassino da tropa.
Eu
vesti o capacete e peguei minhas armas que estavam ainda no meio da tropa, no
chão. Parei e olhei para ele. Disse:
– O
velho tinha perdido tudo, filhos, netos e esposa. Ele desejava morrer e eu só
aliviei a dor dele.
–
Imagine que, quando você desejava se matar, fosse num colega e pedisse para ele
lhe matar. Apesar de pedir, na realidade você não quer morrer. Ninguém quer
morrer. É claro que você nunca desejou realmente morrer, mesmo quando pulou do
prédio. Só fez tudo aquilo para chamar atenção. É bem provável que o velho
também não quisesse morrer e só pediu aquilo para chamar atenção. Para notarem
o quanto estava sofrendo.
Eu
olhei a Letter e disse sério:
– Não
pulei do prédio apenas para chamar a atenção – tentei fazê-lo ver que eu
realmente queria morrer. – Eu agradeceria se alguém me matasse.
Retirei
de minha cintura o revólver e coloquei na mão dele. Pedi:
–
Mate-me! – olhando-o bem nos olhos. – Sua chance de livrar o mundo de minha
presença infame – repeti o que ele me dissera outrora (ver Ideia Suicidas, pág. 76, livro 2).
Letter
calou-se e ficou sério um tempo me olhando com a arma na mão. Depois jogou o
revólver no chão, saindo de perto de mim, indignado.